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eu-e-isso
Sandro Clemes

As aspas se abrem para a memória auditiva do pai: “prefiro ter uma filha puta a um filho viado”, abrem-se novamente para a de um sobrinho sobre a tia: “a tia devia levar uma surra todo dia”. E todos os dias se abrem aspas para memórias de discursos domésticos, que, nas palavras de Sandro Clemes, revelam “traços de misoginia, homofobia, racismo, violência doméstica, ignorância, solidão e sofrimento”. Aspas essas que ressurgem quando uma fotografia antiga é trazida para o primeiro plano, em Táteis. Nela podemos observar duas crianças idênticas se beijando, dando o que chamamos de “selinho”, criando um espelhamento, que foi ressignificado por Clemes décadas depois. Ele é uma das crianças da fotografia, a outra é seu irmão gêmeo. Ambos viados, foram ganhando contornos diferentes com o passar do tempo, contornos que sobrevivem ao convívio em uma “sagrada família”, cuja moral tentou apagar, ou atenuar, os traços bichas desses dois corpos “refletidos”.

Memória e corpo são palavras/conceitos fundamentais para a construção dos processos artísticos de Sandro, são palavras que se vestem, que se corroem, que se iluminam, que se amarram. Se em Ingratitrevas o que se propõe é um estado frente à positividade tóxica a partir da circulação, em diferentes corpos, de uma palavra inventada e serigrafada sobre uma camiseta, em Céu profundo essa palavra-verbete se expande, torna-se colecionável e estandartizada. O procedimento de apropriação rearranja frases de hinos brasileiros, com o intuito claro de questionar “ideais comunitários que não reconhecem diferenças definidoras de múltiplas existências”.

Muito se fala da violência que uma imagem pode provocar no público/espectador, mas aqui se trata mais das violências que provocaram a criação dessas obras, muitas das quais passam pela palavra, seja ela escrita, escutada ou silenciada. Sandro não incita a violência com a violência, ele a esculpe, a modela, a reescreve, a projeta, no duro, no seco, no árduo que atende também a um tipo de revolta, de luta, de inconformismo. Não é apenas a imagem da violência que pode matar, é o não dizer, é o silenciar.

Sincréticos, monocromáticos e num flerte constante com as artes cênicas, Sandro chega ao ponto, que são dois: o “pessimismo da razão” e o “otimismo da vontade”. Um deles é preto e minúsculo em um descampado completamente branco. O outro é branco e minúsculo em um descampado completamente preto. Coexistem como esferas necessárias às nossas sobrevivências diárias. Verso e reverso um do outro, Sandro entende que eles abordam “permanente embate e as mútuas contaminações entre racionalidade e emoção, realidade e desenho, concretude e sonho”. Por mais minimalistas e sincréticas que sejam suas obras, elas exteriorizam os delírios do embate entre vida e morte, ora como alegoria, ora como faca amolada. Mas sempre trazendo a palavra para primeiro plano, seja ela furtada, colecionada, inventada, apropriada, deslocada. Aparece pintada, serigrafada, legendada, projetada, impressa. Sozinha, combinada ou acompanhada, está sempre em relação com sua forma — ela-e-isso.

A escrita, na obra de Sandro, é parte constitutiva do trabalho, vinculada de tal modo que se a tirarmos tudo se perde, se esmaece, se apaga. Literatura de uma palavra só? Poema-processo? Poesia visual? Nada disso, tudo isso, alguma coisa disso? Há um interesse em desmobilizar a ideia de que o lugar da escrita é o fora, o estranho, o outro, o óbvio — a escrita é um espaço estendido. Como Gloria Anzaldúa, Sandro escreve porque tem medo de escrever, mas tem mais medo ainda de não escrever. Ele se dispõe a deixar a escrita seguir seu destino, o de ser o que se quiser que seja, o que se precisar que seja, o que se reclamar que seja — ele-e-isso.

A inseparabilidade, do EU e do ISSO, do ser e do mundo, da palavra e da coisa, surge neste conjunto de fotografias chamado EU-E-ISSO. Utilizando a câmera de um celular acoplada em um caleidoscópio, Sandro provocou um estado de fantasmagoria que tem como protagonistas apenas um, uns e outros ovos. O contraste entre o preto e o branco é retomado e, novamente, percebemos que, alegoricamente, trata-se de um enredo sobre a solidão, a inquietude e a projeção do eu sobre si mesmo. Se tomarmos uma direção psicanalítica para análise desse trabalho, poderíamos confabular uma conversa entre Clemes e Freud, quando este aponta que “o Eu é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é ele próprio a projeção de uma superfície”. Novamente o corpo/ovo aparece como um meio para as imagens psíquicas e seus suportes físicos, a imagem sem matriz, sem original, como espectro.

O olhar de Sandro para o mundo parece funcionar como um caleidoscópio: cria reflexos simétricos, projetados em superfícies espelhadas, formando combinações variadas a cada vez que nos movimentamos em torno de seus trabalhos, num vai-e-vem que rotaciona as relações entre eu-tu, tu-nós, nós-mundo, mundo-sujeito.  Sempre diferentes, essas imagens refletem a intimidade do artista e suas relações familiares, que se multiplicam e mudam de lugar num simples gesto de aproximação que nos toca, a nós e ao outro distante. Partilhamos desse lugar comum que é viver numa sociedade majoritariamente patriarcal, e vemos jorrar de todo bueiro, o lastro de dor e preconceito, por todo lugar/casa por onde ela passa/permanece.

Curadoria Kamilla Nunes
Interlocução artística Otropicalista |Marcelo Fialho e Marco D Julio|
Design gráfi co Tina Merz
Expografi a Sandro Clemes
Assistência em expografi a Julio Gubert
Coordenação de montagem Clarissa Pereira
Mailing e mediação Simone Bobsin

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